A cirurgia bariátrica e os planos de saúde

23/10/2018 - Planos de Saúde

Autor: Dr Valter Gurfinkel

No mundo ocidental, a prevalência da obesidade, definida como excesso de gordura corporal, resultante do desequilíbrio crônico entre consumo alimentar e gasto energético, está aumentando em todas as faixas etárias.

O peso corporal, em regra, é uma função do balanço de energia e de nutrientes ao longo de um período de tempo. Assim, o balanço energético positivo (ingestão calórica maior que o gasto energético) por longo período resultará em ganho de peso corporal na forma de gordura, enquanto o balanço energético negativo resultará no efeito oposto.

A obesidade deve ser considerada um problema de saúde pública com implicações socioeconômicas significativas e que têm proporções epidêmicas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a obesidade como um dos maiores problemas de saúde no mundo. Em 2014, mais de 1,9 milhão de adultos estavam acima do peso. Destes, 600 milhões já estão obesos. De 1980 a 2013, a obesidade e o sobrepeso, em conjunto, aumentaram 27,5% entre os adultos e 47,1% entre as crianças. No Brasil, a obesidade cresce cada vez mais, e alguns levantamentos apontam que mais de 50% da população está acima do peso, ou seja, na faixa de sobrepeso e obesidade.

A causa da obesidade não é de fácil identificação, uma vez que é caracterizada como uma doença multifatorial, ou seja, é resultado de uma complexa interação entre fatores comportamentais, culturais, genéticos, fisiológicos e psicológicos. Pode, dessa forma, ser classificada em dois grandes contextos: (a) por determinação genética ou fatores endócrinos e metabólicos, e (b) influenciada por fatores externos, sejam eles de origem dietética, comportamental ou ambiental.

A influência hormonal é particularmente importante na obesidade. Hormônios como insulina, leptina, grelina, orexina, CCK e oximodulina, entre outros, agem estimulando ou inibindo a ingestão alimentar, mas indivíduos obesos apresentam desregulação e resistência na ação destes hormônios tanto central quanto periférica, resultando em desequilíbrio crônico entre oferta e gasto energético.

Em alguns casos, a obesidade pode ser decorrente de uma condição iatrogênica, isto é, secundária ao uso de medicamentos tais como antipsicóticos, antidepressivos, antiepiléticos e esteróides. Além disso, certas doenças endócrinas também estão relacionadas ao ganho de peso, como a Síndrome dos Ovários Policísticos, a Síndrome de Cushing, hipotireoidismo, doenças hipotalâmicas e deficiência do hormônio do crescimento, entre outras.

Existem várias formas de se definir e quantificar a obesidade. Considerando-se o índice de massa corporal (IMC) para definir obesidade, a Sociedade Americana de Cirurgia Bariátrica e a Organização Mundial de Saúde consideram índice de até 25 kg/m² como normal; entre 25 e 30 kg/m² como sobrepeso; entre 30 e 35 kg/m² como obesidade grau I; entre 35 e 40 kg/m² como obesidade grau II e acima de 40 kg/m² como obesidade grau III ou “obesidade mórbida”.  Este critério também é adotado no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Outros métodos de avaliação da obesidade são descritos na literatura médica, como a medida da circunferência abdominal, a medidas de pregas cutâneas, a pesagem hidrostática (peso submerso), a composição corporal por absorciometria por raios-X de dupla energia (DEXA), a bioimpedanciometria, a calorimetria indireta e as técnicas de imagem como ressonância magnética, ultrassonografia e tomografia computadorizada. Todos estes métodos têm vantagens e desvantagens entre si, cabendo ao médico estabelecer o método de avaliação mais adequado ao caso.

 

A obesidade e suas complicações

Ao nosso ver, do ponto de vista clínico, a definição mais adequada de obesidade mórbida não deveria se limitar exclusivamente ao valor do IMC, mas incluir todos aqueles que tenham alguma comorbidez (complicação) importante relacionada diretamente ou indiretamente com a obesidade. Assim, mesmo que o indivíduo possua um IMC abaixo de 40 kg/m², mas apresente alguma complicação clínica significativa relacionada a esta obesidade, como o diabetes ou hipertensão arterial devidamente verificadas por um médico, deve se enquadrar na definição de obesidade mórbida.

Os riscos de morbidade e mortalidade da obesidade foram estudados em inúmeras revisões sistemáticas internacionais. O excesso de peso corporal e as comorbidezes resultam na queda da qualidade de vida e na redução da expectativa de duração da vida.

Estudos populacionais têm demonstrado que o excesso de gordura, principalmente na região abdominal, está intimamente relacionado ao risco de desenvolvimento de doenças. As comorbidezes associadas à obesidade são inúmeras e incluem diabetes tipo 2, apneia do sono, hipertensão arterial, dislipidemia, doença coronária e osteoartrites, as doenças cardiovasculares (infarto do miocárdio, angina, insuficiência cardíaca congestiva, acidente vascular cerebral, fibrilação atrial, cardiomiopatia dilatada, cor pulmonale), a síndrome de hipoventilação, asma grave não controlada, osteoartroses, hérnias discais, refluxo gastroesofágico, colecistopatia calculosa, pancreatites agudas de repetição, esteatose hepática, incontinência urinária de esforço na mulher, infertilidade masculina e feminina, disfunção erétil, síndrome dos ovários policísticos, veias varicosas e doença hemorroidária, hipertensão intracraniana idiopática, estigmatização social e depressão, entre outras.

Todas estas comorbidezes estão listadas na Resolução nº 2.131/15 do CFM, e poderão ser indicação para a realização da cirurgia bariátrica em pacientes com IMC maior que 35 kg/m².

Importante ressaltar que esta “lista” deve ser considerada meramente exemplificativa, ou seja, não esgota o assunto, vez que outras doenças importantes não listadas podem estar direta ou indiretamente ligada à obesidade e ser uma indicação formal para a cirurgia bariátrica.

 

O tratamento da obesidade

O tratamento da obesidade é complexo e multidisciplinar, podendo ser clinico ou cirúrgico. A escolha do tratamento deve basear-se na gravidade da doença e na presença de doenças associadas, e visa a melhoria da saúde e da qualidade de vida, mediante redução do peso corporal, suficiente para curar ou, pelo menos, melhorar as comorbidezes e promover o bem estar físico e psicológico.

Considera-se sucesso no tratamento da obesidade a capacidade de atingir e manter uma perda de peso clinicamente útil (usualmente de 5 a 10% do peso inicial), e que resulte em efeitos benéficos e duradouros sobre as doenças associadas.

No entanto, a prática clínica indica que a obesidade permanece largamente refratária ao tratamento clínico tradicional envolvendo terapêutica farmacológica e psicoterápica, readequação alimentar, diminuição da ingestão calórica e atividade física regular no longo prazo.

O tratamento cirúrgico para obesidade, denominado genericamente de bariátrica, tem-se mostrado uma forma eficaz de manutenção do controle ponderal de longo prazo quando há falha no tratamento clínico. Também está comprovado que a redução do peso pela cirurgia traz diminuição da incidência e do risco de progressão de várias doenças associadas à obesidade.

A cirurgia bariátrica refere-se a todos os procedimentos cirúrgicos geralmente realizados em pessoas com obesidade significativa, com o objetivo de perder peso e tratar, bem como prevenir, comorbidezes relacionadas à obesidade. A eficácia da cirurgia bariátrica foi demonstrada por extensas metanálises em todo o mundo. Além disto, a cirurgia é marcadamente superior ao tratamento conservador em relação à redução de peso e alívio de doenças causadas pela obesidade, podendo reduzir a letalidade a longo prazo da obesidade em até 40%.  É o único tratamento para a obesidade comprovadamente capaz de proporcionar uma perda de peso maior que 15% por até 10 anos.

Há três formas gerais de tratamento cirúrgico da obesidade: os procedimentos restritivos, os disabsortivos e os combinados (restrição e disabsorção), cada qual com suas indicações clínicas, seus resultados e seus índices de complicações.

Segundo a Resolução nº 2.131/15 do CFM, que estabelece “normas seguras” para o tratamento cirúrgico da obesidade, as cirurgias bariátricas eticamente reconhecidas e aceitas, até o presente momento, são a inserção de banda gástrica ajustável, a gastrectomia vertical, a derivação gastrojejunal e Y de Roux, cirurgia de Scopinaro ou de ‘switch’ duodenal. Segundo a literatura médica, a técnica da banda gástrica ajustável, apesar de eticamente aprovada, é recomendada apenas em casos excepcionais, já que a perda de peso é insuficiente a longo prazo. As outras modalidades são consideradas experimentais e devem cumprir rigorosos protocolos de investigação científica.

Dentre os procedimentos eticamente aceitos de cirurgias bariátricas, e com bons resultados a longo prazo, está a gastrectomia vertical por videolaparoscopia, sendo uma da mais realizadas em todo o mundo atualmente. Explicando de forma simplificada, funciona promovendo uma restrição gástrica, através da remoção de aproximadamente 60 a 80% do estômago, o que leva também a uma redução da produção de um hormônio denominado grelina. A grelina é um hormônio natural produzido no estômago e no pâncreas, e quanto maior for sua produção, maior será o estímulo de apetite. A grelina é um dos principais contribuintes na indução do desejo de comer. Estudos mostram que os obesos tem uma maior sensibilidade a esse hormônio, de forma que mesmo uma pequena produção leva a grande sensação de fome e vontade de comer.

 

Os critérios normativos para cirurgia bariátrica

Segundo a Resolução 2.131/15 do CFM, os critérios gerais de indicação para a cirurgia bariátrica  incluem IMC maior ou igual a 40 kg/m² com ou sem comorbidezes; IMC maior ou igual a 35 kg/m², quando houver determinados estados mórbidos associados; falha no tratamento clínico após 2 anos e obesidade grave instalada há mais de 5 anos. Um pré-requisito geralmente aceito na comunidade médica para a cirurgia bariátrica é que um programa de perda de peso estruturado e conservador falhou, ou é considerado inútil.

Existe também o critério de idade, sendo a cirurgia bariátrica indicada para pessoas acima de 18 anos. Adolescentes com 16 anos completos e menores de 18 anos poderão ser operados, mas há exigências especiais que devem ser atendidas.

Entre as precauções para a indicação da cirurgia estão também o não uso de drogas ilícitas e alcoolismo; a ausência de transtorno de humor grave, de quadros psicóticos em atividade ou de quadros demenciais. Deve haver a compreensão, por parte do paciente e familiares, dos riscos e mudanças de hábitos inerentes a uma cirurgia de grande porte sobre o tubo digestivo e da necessidade de acompanhamento pós-operatório com a equipe multidisciplinar, a longo prazo.

Os operadores de planos de saúde, além da Resolução 2.131/15 do CFM, também utilizam como critério para cobertura de cirurgias bariátricas o contido no Anexo I da Resolução Normativa nº 428 da ANS, bem como a sua Diretriz de Utilização (DUT) nº 27, que se encontra no Anexo II. Esta Resolução Normativa, datado de 07/11/17, define o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência à saúde realizados a partir de 2 de janeiro de 1999, ou contratados antes desse período e que tenham sido adaptados à Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde).

Os critérios gerais para a cirurgia bariátrica datam de 1991, com poucas modificações desde então. No entanto, novos procedimentos foram introduzidos, a abordagem laparoscópica em grande parte substituiu a cirurgia aberta, e maiores e melhores níveis de evidência científica estão agora disponíveis sobre os riscos para a saúde da obesidade, bem como os benefícios e segurança da cirurgia bariátrica em pessoas com IMC menor de 35 kg/m² e portadoras de doenças associadas.

De fato, pacientes portadores de obesidade acompanhada de comorbidezes importantes, que não melhoram com o tratamento clínico convencional, e que não possuem o IMC mínimo para a autorização da cirurgia bariátrica por parte dos operadores de planos de saúde, na realidade, é uma situação muito comum na prática médica. Por este motivo, a Sociedade Americana para Cirurgia Bariátrica e Metabólica, recentemente, promoveu uma revisão de suas posições e recomendações quanto à questão da indicação cirúrgica para pacientes com obesidade classe I (IMC entre 30 e 35 kg/m²), concluindo que:

  1. A obesidade classe I é uma doença bem definida que causa, ou exacerba, múltiplas outras doenças, diminui a duração da vida e diminui a qualidade de vida. O paciente com obesidade classe I deve ser reconhecido como merecedor de tratamento cirúrgico desta doença;
  2. As opções atuais de tratamento não cirúrgico para a obesidade de classe I não são geralmente eficazes na obtenção de uma redução de peso substancial e duradoura;
  3. Para pacientes com IMC 30-35 kg/m² que não alcançam peso substancial e durável e melhora da comorbidade com métodos não cirúrgicos, a cirurgia bariátrica deve ser uma opção disponível para indivíduos adequados;
  4. As cirurgias bariátricas têm sido demonstradas como sendo um tratamento bem tolerado e eficaz para pacientes com IMC 30-35 a curto e médio prazo.

 

Nesta mesma linha, no Brasil, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica reconhece, na diretriz denominada de “Consenso Bariátrico Brasileiro”, que pacientes com IMC entre 30 e 35 kg/m², independentemente das técnicas utilizadas, havendo comorbidade grave verificada por um médico especialista na respectiva área da doença, as cirurgias bariátricas passam a ser indicadas, mesmo com IMC abaixo do formalmente indicado na Resolução CFM nº 2.131/15:

“4.1 – Em relação à massa corpórea:

(...)

4.1.3 – IMC entre 30 e 35 kg/m² na presença de comorbidades. As doenças precisam ter, obrigatoriamente, a classificação “grave” por um médico especialista na respectiva área da doença. Também é obrigatória a constatação de “intratabilidade clínica da obesidade” por um(a) endocrinologista. Recomendação: nesses casos, a equipe cirúrgica e a instituição hospitalar envolvidas devem manter registro de “indicação especial por comorbidez grave”, e também anexar documento emitido por especialista na área respectiva da doença (cópias no prontuário médico e com o cirurgião)”.

 

Portanto, o “ponto de corte” existente do IMC, que exclui aqueles com obesidade classe I, foi estabelecido arbitrariamente quase 20 anos atrás, e não existe justificativa atual, com base em evidências de eficácia clínica, custo-eficácia, ética ou equidade, de que este grupo deve ser excluído do tratamento cirúrgico que salva vidas.

Especificamente no caso dos portadores de diabetes tipo 2, a literatura médica é clara no sentido que apenas o IMC não é um parâmetro adequado para definir a indicação operatória em obesos diabéticos mal controlados. A cirurgia bariátrica realizada em pacientes com IMC menor que 35 kg/m2, denominado de “cirurgia metabólica” e visando o tratamento do diabete, tem-se mostrado método seguro e eficaz na análise de curto e médio prazo. De fato, em vários países, o diabetes tipo 2 agora é considerado uma indicação independente para cirurgia bariátrica nos pacientes cujo IMC esteja entre 30 e 35 kg/m2.

Observa-se, portanto, que os critérios formais utilizados pelos planos de saúde no Brasil, baseados na Resolução Normativa nº 428 da ANS e sua DUT, e a Resolução 2.131/15 do CFM, precisam ser revistos para beneficiar também os pacientes portadores de obesidade com complicações, mas com IMC menor que 35 kg/m², como já adotados em outros países.

Do ponto de vista técnico, entendemos que os critérios descritos pelo CFM e pela ANS não são absolutos, nem devem ser considerados isoladamente, sendo o mais importante no caso da cirurgia bariátrica a decisão fundamentada do médico assistente, apoiada por equipe multidisciplinar que envolve a participação de clínicos, cirurgiões, nutricionistas, psicólogos, entre outros.

 

O direito do paciente à saúde plena e os planos de saúde

O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS (RN 428/17) constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima obrigatória nos planos privados de assistência à saúde, sob a égide da Lei 9.656/98 (que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde nos “planos novos” ou antigos “adaptados”), de acordo com a segmentação contratada.

Por ser uma referência “básica”,

A negativa para a cobertura da cirurgia bariátrica pelos planos de saúde naqueles que possuem indicação médica expressa e fundamentada, mesmo que não se enquadrem perfeitamente às resoluções normativas da ANS ou do CFM, viola direitos fundamentais destes pacientes. As resoluções normativas não podem ser consideradas absolutas, de forma que cada caso deve ser analisado de forma individualizada.

Nós somos da opinião que a decisão final para indicação da cirurgia bariátrica compete única e exclusivamente ao médico que assiste ao paciente, em função de sua autonomia profissional, e não do plano de saúde ou “resoluções” das agências governamentais.

O objeto tutelado em todo e qualquer plano de saúde é, obviamente, a saúde, e que é um dos maiores bens jurídicos da vida (artigos 6º e 196 da Constituição Federal), não sendo aceitável, diante do caso concreto, a recusa abusiva de uma operadora do plano contratado em prover os meios necessários para uma vida mais digna. Para o STJ, deve ser proporcionado ao paciente-consumidor o tratamento mais moderno e adequado para sua saúde, visando o melhor resultado com o menor risco.

Portanto, o direito à saúde é um direito constitucionalmente protegido e é indisponível, isto é, trata-se de um direito do qual o indivíduo não pode abrir mão, devendo ser protegido de forma integral, não podendo ser tratado como se fosse uma atividade meramente mercantil. O direito à saúde, em razão de sua natureza, qual seja, um direito fundamental, se sobrepõe a qualquer tipo de regulamentação ou burocracia a inviabilizar o seu pleno exercício, não podendo a operadora de plano de saúde devidamente contratada se eximir do cumprimento de seu dever legal.

De fato, o procedimento de gastroplastia por videolaparoscopia, listado especificamente no Anexo I e II da Resolução Normativa nº 428/17, deve ser obrigatoriamente coberto por planos de saúde de segmentação hospitalar e por planos-referência, de acordo com o Parecer Técnico nº 13/GEAS/GGRAS/DIPRO/2018, atendido os critérios clínicos.

Naturalmente, uma vez que a cirurgia foi precisamente indicada pelos médicos do paciente, não só o procedimento em si, mas também todas as despesas inerentes a este, como honorários profissionais, materiais, medicamentos, taxas, insumos, etc, devem estar integralmente cobertos pelo plano de saúde, sob pena de ofender diretamente o próprio objeto do contrato.

 

A abusividade na negativa de cobertura à cirurgia bariátrica

Conforme preceitua a lei 9.656/98, a assistência médica compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos da lei e do contrato firmado entre as partes, podendo ser considerada abusiva limitações à sua aplicação, nos termos do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, até porque podem as limitações contratuais abranger rede de atendimento hospitalar, laboratorial e tipo de acomodação, mas em nenhuma circunstância limitar o tipo e a qualidade do tratamento que tenha por objetivo restabelecer a saúde do contratante, principalmente com indicação médica.

Ora, se a obesidade é uma doença, e a cirurgia bariátrica é parte do tratamento indicado pelo médico, o plano de saúde ou seguradora deve cobrir sem limitações o procedimento para a sua resolução, independentemente de qualquer norma administrativa reguladora.

A legislação é clara ao indicar que o tratamento da obesidade, especialmente se acompanhada de comorbidezes, é de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, nos termos do artigo 10, caput, da Lei 9.656/98, que prevê o plano-referência de assistência à saúde, e que abrange a cobertura das doenças relacionadas à obesidade com complicações de saúde.

Ressalte-se que a obesidade não está incluída dentre as hipóteses de exceção da Lei 9.656/98, expressamente elencadas nos incisos do mesmo artigo 10. Ao contrário, o inciso IV do artigo em referência permite apenas a exclusão da cobertura de tratamentos de “emagrecimento com finalidade estética”. De fato, segundo o STJ, a restrição legal ao custeio pelo plano de saúde e seguradoras a tratamento de emagrecimento restringe-se somente aos tratamentos de cunho estético ou rejuvenescedor.

O objetivo contratual da assistência médica por plano de saúde comunica-se, necessariamente, com a obrigação de restabelecer, ou procurar restabelecer, através dos meios técnicos possíveis, a saúde do contratante. Se o contrato de plano de saúde prevê a cobertura de determinado tratamento, não podem ser excluídos quaisquer procedimentos imprescindíveis para o seu êxito.

O Rol de Procedimentos da ANS é meramente exemplificativo, pois não é fixado por lei, mas sim por resolução administrativa da diretoria colegiada da autarquia. Assim, havendo prescrição médica para procedimentos, cirurgias, terapias e/ou medicamentos tecnicamente reconhecidos por pesquisas científicas e legitimadas pela comunidade médica, mesmo que diferindo das normatizações fixadas pela ANS (repita-se, estes meramente exemplificativos), o operador de planos de saúde tem o dever contratual de cobertura, dada a natureza do contrato em si e para preservar a integridade dos pacientes.

Neste sentido, a jurisprudência entende que, havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS (Súmula 102 TJSP).

A doutrina e jurisprudência também entendem ser abusiva toda cláusula contratual ou resolução administrativa que exclua da cobertura do plano de saúde qualquer tipo de procedimento ou medicamento necessário para assegurar o tratamento de doenças previstas pelo referido plano. A negativa dos planos de saúde em autorizar o tratamento cirúrgico a que está contratualmente obrigada, portanto, equivale a não prestação dos serviços contratados.

 

A aplicação do Código de Defesa do Consumidor às cirurgias bariátricas

As discussões que envolvem a negativa de cobertura de cirurgia bariátrica pelos planos de saúde enquadram-se perfeitamente nos termos do Código de Defesa do Consumidor (CDC). A doutrina e jurisprudência brasileira são claras neste sentido, pois, de um lado, há um consumidor (o paciente-contratante) e, de outro, um fornecedor (operador do plano de saúde). Neste sentido, o STJ editou a Súmula 469, pacificando o entendimento que aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde.

É importante o enquadramento desta questão no CDC porque, na relação de consumo, opta-se por proteger o consumidor como parte contratual mais vulnerável, a proteger suas expectativas legítimas, então nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do Direito. Por esta razão, no âmbito da tutela especial reparatória, o que o CDC se prontifica a fazer é dotar o consumidor (presumivelmente a parte mais fraca na relação jurídica com o fornecedor) de instrumentos mais eficazes para que possa exercer os direitos que a lei especial lhe assegura.

Não obstante os contratos de planos de saúde estabelecerem obrigações recíprocas entre consumidor e fornecedor, observa-se, também, que estes contratos são oferecidos na forma de adesão, padronizados, onde as cláusulas são preestabelecidas pela própria operadora, não há acerto prévio entre as partes, ou discussão de cláusulas e redação de comum acordo, o que reforça o entendimento de incidência do CDC nesta questão.

 

A interferência ilícita dos planos de saúde na indicação médica

São inúmeros os casos em que os médicos indicam a cirurgia bariátrica a seus pacientes em função de seu quadro clínico, mas cuja cobertura é negada pelas operadoras dos planos de saúde porque estes não atingem um IMC mínimo, ou não atendem estritamente ao determinado nas normas regulamentadoras da ANS.

No entanto, a nosso ver, o mero fato de um procedimento prescrito não atender integralmente a uma diretriz de utilização da Agência Nacional de Saúde Suplementar não serve para justificar uma negativa de cobertura, pois as tabelas dos órgãos reguladores e administrativos não exaurem a relação de procedimentos ou exames a serem cobertos, dispondo apenas sobre o mínimo que os planos de saúde devem oferecer aos seus clientes.

A jurisprudência é clara no sentido que as diretrizes estipuladas pela ANS não têm o condão de se sobrepor a indicação do médico que acompanha o paciente, especialmente quando a cirurgia bariátrica indicada por equipe especializada se mostra indispensável para o restabelecimento da sua saúde e do seu bem-estar, de modo que incumbe ao plano de saúde contratualmente cobrir os custos da cirurgia.

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que um determinado plano de saúde custeasse cirurgia ao paciente com IMC inferior a 35 kg/m2, afirmando que “indicado o procedimento por equipe médica especializada e prevendo o contrato para tratamento da patologia que acomete o autor, não há como excluir o tratamento destinado ao restabelecimento de sua saúde”.

Portanto, havendo expressa indicação médica para o paciente se submeter à cirurgia bariátrica, uma negativa de cobertura pelo plano de saúde é abusiva, pois as normas regulamentadoras ANS não podem ser invocadas como forma de subsidiar o cumprimento do contrato segundo o interesse econômico da operadora do plano e em detrimento da sua saúde.

É pacifico em nossa doutrina e jurisprudência que uma resolução ou diretriz de utilização dada pela ANS, por não ter força de lei, não tem qualquer efeito vinculante quanto às decisões do médico do paciente. É inegável o direito do médico em indicar o procedimento que entende o mais adequado para o seu paciente, bem como é direito deste escolher se vai, ou não, se submeter ao tratamento proposto. O médico é o único que tem a possibilidade de acompanhar o caso específico e, com base no seu quadro clínico, tem condições de sugerir os melhores meios para o tratamento do paciente, e não o plano de saúde. De fato, segundo entendimento já pacificado pelo STJ, o plano de saúde pode especificar as doenças que terão cobertura, mas não o tratamento a ser utilizado.

É de clareza meridiana que a eleição do melhor método a ser empregado em cada caso específico deve ficar a cargo dos médicos responsáveis pelo tratamento de seus pacientes, uma vez que, na ocorrência de qualquer contratempo é deles, médicos, toda a responsabilidade ética, funcional, legal e civil pelos seus atos. Atento a esta antiga discussão, ainda em 1993, o Conselho Federal de Medicina disciplinou a questão na Resolução CFM 1.401, estabelecendo que as operadoras de saúde não podem impor restrições quantitativas ou de qualquer natureza ao exercício da profissão de médico. Um plano de saúde ou seguradora só pode interferir se na prescrição houver manifesto prejuízo ao paciente. Isso é um corolário do princípio da autonomia do médico.

No nosso entendimento, a cirurgia bariátrica pode (e deve) ser indicada, inclusive, como tratamento primário, ou seja, sem tratamento clínico prévio, se este último não tiver chance de sucesso. A indicação passa a ser urgente se a morbidade do paciente, ou outros fatores psicofísicos e sociais, indicarem que a sua saúde pode se agravar significativamente sem a cirurgia, devidamente justificado pelo médico cirurgião bariátrico e sua equipe multidisciplinar.

Cabe à operadora de plano de saúde observar estritamente a prescrição médica, sendo irrelevante que a cirurgia não é indicada pela ANS como obrigatória, se atende ou não as diretrizes de utilização da ANS ou qualquer outra, vez que o que importa para a manutenção da saúde do paciente é a recomendação médica para tanto.

 

A cirurgia plástica pós-bariátrica

Na grande maioria dos casos, após realizar a cirurgia bariátrica, os pacientes apresentam significativa melhoria na qualidade de vida, especialmente na redução de distúrbios metabólicos e o desaparecimento de problemas relacionados a distúrbios ortopédicos, respiratórios, cardiovasculares, do sono, etc.

No entanto, sabe-se também que, após o emagrecimento e estabilização do peso proporcionado pela cirurgia bariátrica, pode haver excesso de pele e outros tecidos que passam a prejudicar o paciente. Ao longo da recuperação de cirurgia bariátrica o paciente já pode perceber o surgimento da flacidez no abdome, mamas, coxa, braços, face, pescoço e em outras áreas do corpo nas quais ele mais perde tecido adiposo, isto porque a pele não retorna totalmente ao seu estado original.

Consequência quase que inevitável da cirurgia bariátrica, o excesso de pele e outros tecidos decorrentes do emagrecimento pode acarretar prejuízos na postura, no equilíbrio, na locomoção, na integração social, na vida sexual e na própria pele que, dobrada sobre si mesma, mantém-se úmida e propensa a infecções, dermatites e a infestações repetidas. O tratamento para estas condições, em regra, é cirúrgico com remoção dos tecidos redundantes.

Segundo a literatura médica, estas cirurgias, consideradas como plásticas reparadoras, tornam-se necessárias em 90% dos casos após cirurgias bariátricas e estabilização na perda de peso. A necessidade varia conforme o peso anterior, o grau de perda ponderal, a idade, a genética, entre outros fatores, mas, de um modo geral, trata-se de uma pele que foi submetida a estiramento exagerado por longos períodos de tempo e perdeu as suas propriedades elásticas, tornando-se flácida e disfuncional e sujeita a dermatoses.

A cirurgia para remoção de excesso de tecidos adiposos e epiteliais necessária para dar continuidade ao tratamento da obesidade, obviamente, visa a melhoria funcional e não se confunde com tratamento estético. A Resolução Normativa ANS 387/2015 em seu artigo 20, §1º, II define como estéticos apenas os procedimentos que não visam restauração parcial ou total da função de órgão ou parte do corpo humano lesionado, o que claramente não ocorre nestes casos.

A cirurgia plástica para retirada de excesso de tecidos após emagrecimento acentuado, decorrente de intervenção cirúrgica bariátrica e com indicação médica, portanto, tem caráter reparador, pois visa restabelecer a funcionalidade orgânica e o bem-estar físico e psíquico do paciente, e deve ser considerada como extensão inerente aos procedimentos bariátricos.

Ainda que possa haver divergência por parte do plano de saúde sobre este fato, a doutrina e a jurisprudência já colocaram um fim nesta discussão. De fato, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo editou a Súmula 97, entendendo que não pode ser considerada simplesmente estética a cirurgia plástica complementar de tratamento de obesidade mórbida, havendo indicação médica.

 

No próximo artigo daremos continuidade ao tema. A seguir, respostas para algumas das principais perguntas que, na qualidade de médico e advogado especializado na área de Direito Médico, nos são feitas rotineiramente:

  • Toda obesidade tem indicação de cirurgia bariátrica?

Não. Toda obesidade deve ser tratada, como qualquer outra doença, mas nem toda obesidade tem indicação para cirurgia bariátrica. A obesidade é uma doença multifatorial, ou seja, pode ter várias causas, inclusive simultâneas. Todo paciente obeso, mesmo que apresente apenas um sobrepeso, precisa ser clinicamente avaliado e acompanhado para evitar progressão e as complicações associadas. A cirurgia está reservada para casos mais graves e refratários ao tratamento clínico.

 

  • A operadora do plano de saúde pode recusar a cobertura de uma cirurgia bariátrica quando há indicação médica formal?

É muito frequente, na prática, que as operadoras de planos de saúde coloquem vários tipos de óbices para não dar cobertura à cirurgia bariátrica. Exemplos típicos incluem a alegação de inexistência de cobertura para este tipo de cirurgia no plano contratado pelo paciente; que o grau de obesidade não tem indicação para cirurgia; que o caso não se enquadra estritamente ao determinado nas normas da ANS; ou ainda que a finalidade da cirurgia é estética. Nós entendemos que, uma vez que o contrato não o exclua especificamente, os pagamentos das mensalidades estão em dia, e exista indicação médica formal e bem documentada para o tratamento cirúrgico bariátrico, especialmente por equipe multidisciplinar, a negativa de cobertura por parte da operadora pode ser considerada abusiva, sendo cabíveis as medidas legais pertinentes.

 

  • A operadora do plano de saúde pode alegar que a obesidade é preexistente para negar a cobertura à cirurgia bariátrica?

Em regra, os tribunais não tem aceitado a tese de pré-existência da obesidade como motivo para negar a cobertura para a cirurgia bariátrica, especialmente se for demonstrada a indicação formal por equipe de saúde multidisciplinar. Nestes casos, é a operadora do plano de saúde que deve provar a doença preexistente no paciente, e a ciência recíproca das partes quanto à exclusão. Não tendo a operadora realizado exames clínicos antes da contratação do plano, demonstrando cabalmente a existência da obesidade mórbida, não poderá negar atendimento médico sob o argumento de doença preexistente. Se estes exames não foram feitos, ou não houve óbices para a aceitação do conveniado no plano de saúde à época, a operadora assume os riscos inerentes ao contrato, devendo custear os procedimentos destinados ao tratamento.

 

  • É possível a cobertura de cirurgia bariátrica nos planos de saúde antigos, contratados antes de 02/01/99 e não adaptados?

Sim. As coberturas mínimas obrigatórias, e que incluem as cirurgias bariátricas, são legalmente asseguradas nos assim chamados “planos novos” (planos privados de assistência à saúde comercializados a partir de 2/1/1999), e pelos “planos antigos” adaptados (planos adquiridos antes de 2/1/1999, mas que foram ajustados aos regramentos legais, conforme o art. 35 da Lei nº 9.656/98). No caso de “planos antigos” não adaptados, a cobertura à cirurgia bariátrica pode, de fato, ser questionada pela operadora do plano, especialmente se não houver previsão contratual expressa, mas os tribunais frequentemente tem entendido que o contrato de plano de saúde configura-se como relação de trato continuado, a qual se renova periodicamente, fazendo com que cada renovação corresponda a uma nova contratação, razão pela qual se mostra possível a aplicação da Lei nº 9.656/98 mesmo em “contratos antigos”, especialmente no sentido de proteção à saúde do contratante.




Sobre o autor: